Branding em crise: a difícil reinvenção do SBT enquanto marca sem Silvio Santos

A emissora completa 44 anos em meio a uma crise de branding sem o seu fundador, o conhecido ‘Rei da TV’. O caso expõe os riscos de uma marca dependente de um ícone e traz reflexões valiosas sobre gestão de identidade e legado para o futuro


No universo corporativo, perder uma peça-chave é sempre um desafio que, se não for tratado com cuidado, pode escalar para consequências graves. O exemplo mais recente é o do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), que nesta terça-feira (19) completou 44 anos de existência em meio a uma crise significativa que afeta todos os setores da empresa.

Parece exagero, mas o falecimento do apresentador Silvio Santos, em 17 de agosto de 2024 – apenas dois dias antes do aniversário da emissora – gerou tensão e incertezas internas. Desde a fundação em 1981, a “TV mais feliz do Brasil” trazia em seu DNA todos os atributos que Silvio construiu na carreira. Em resumo, o SBT tinha o rosto, o jeito e a atitude do “patrão”, maior garoto-propaganda da marca. Sua ausência abriu a incógnita: como seguir sem essa figura central?

Exemplo disso foi a provocação ocorrida em 2014, após Silvio dizer que assistia a série Breaking Bad pela Netflix. A Record e a plataforma de streaming divulgaram em uma revista e logo receberam uma resposta do SBT
Exemplo disso foi a provocação ocorrida em 2014, após Silvio dizer que assistia a série Breaking Bad pela Netflix. A Record e a plataforma de streaming divulgaram em uma revista e logo receberam uma resposta do SBT (Foto: Reprodução)

Inicialmente aqueles que acompanham a turbulência pensaram que o problema era apenas financeiro. Obviamente o déficit no caixa é sentido: em 2024, o prejuízo chegou à casa dos R$ 100 milhões. No entanto, a questão vai além: trata-se de um abalo profundo na identidade e na gestão da marca (branding) após a perda de seu fundador e maior nome.

Na verdade, convenhamos: Silvio não foi apenas o maior nome do SBT, mas também da televisão brasileira em seus 75 anos de história. Chamado de “Rei da TV”, ditou normas, criou escola e se tornou referência no entretenimento. Esse é o branding em sua forma mais autêntica: Silvio transformou-se em marca própria e fez de suas empresas um reflexo de sua imagem…

E aqui nasce o problema! Como uma rede de televisão, consolidada como sinônimo de diversão no imaginário popular, pode se sustentar sem o seu principal alicerce? Manter o legado? Se reinventar? Buscar um meio-termo? A falta de respostas claras já resulta em danos concretos e preocupantes, como a queda acentuada da audiência e a ‘fuga’ de anunciantes.

A atual situação

Fachada da sede do SBT, o Centro de Televisão (CDT) da Anhanguera, em Osasco/SP
Fachada da sede da emissora, o Centro de Televisão (CDT) da Anhanguera, em Osasco/SP (Foto: Reprodução/Wikimedia)

Antes mesmo de falecer, Silvio reorganizou seu grupo empresarial, colocando as filhas nos cargos de liderança. O SBT ficou sob o comando de Daniela Beyruti, que promoveu uma reestruturação na grade, dando mais espaço ao jornalismo e ao esporte, em detrimento do seu pai, que impulsionava o cenário de entretenimento – diferencial que distinguia a emissora das concorrentes.

O resultado? Até agora, o público não se acostumou. Muitos críticos afirmam que o canal perdeu sua identidade, tornando-se ‘irreconhecível’. A situação se agravou após o 17 de agosto, data que virou comoção nacional com a notícia da partida do ‘Homem do Baú’.

Desde então, a emissora vive uma volatilidade de apresentadores, horários e programas. Apesar de Silvio também ser conhecido por isso, ao mudar a programação por intuição constantemente, agora essas alterações levaram a uma mudança drástica sem um planejamento definido, perdendo traços originais de branding e afastando tanto o ‘povão’ quanto o mercado publicitário.

Qual é a verdadeira identidade?

É difícil definir e se aprofundar nisso em apenas um artigo, entretanto, se nos coloquemos rodeados das quatro grandes redes de TV do país e fizermos a identificação rápida de cada uma, assim seria:

A Globo é lembrada pela sua vasta produção de novelas, sendo premiada diversas vezes, e renome no telejornalismo nacional e internacional; a Record se consagrou no âmbito policial, com programas abordando este tema, além do espaço religioso, fazendo até obras de dramaturgia inspiradas na Bíblia; já a Band é intitulada como ‘canal do esporte’, por fazer coberturas diversificadas há décadas (não apenas o futebol), tendo também um setor de jornalismo político e policial forte na grade.

E o SBT, sendo um caso à parte, fugia um pouco do óbvio ao investir na linha de variedades não apenas nos finais de semana – apesar de ter o domingo como melhor dia da programação, conseguindo constantemente o primeiro lugar –, programas infantis e de shows. Com apresentadores de peso, a emissora era marcada como referência na área para as rivais, justamente por ter Silvio Santos como orientador.

Propaganda publicada na Revista Veja em janeiro de 2001, mostrando os principais artistas do SBT, incluindo Silvio Santos, com a manchete "em 2000 o SBT liderou e empatou a audiência 455 vezes, deixando a gente cheio de vitórias, cheio de orgulho, e a Globo cheia da gente. O FUTURO JÁ COMEÇOU".
Propaganda publicada na Revista Veja em janeiro de 2001 (Foto: Reprodução)

Se formos além, no imaginário popular, tenho certeza que o canal está na memória de grande parte da população. Seja pelos desenhos que passavam diariamente, pelos filmes exibidos ou pelos inúmeros programas de auditório, game shows e apresentações de artistas que repercutiam. Muitas vezes, assistir a programação era sinônimo de juntar a família, com irmãos, primos, pais e avós, tornando-a muito especial para as nossas vidas.

A emissora construiu slogans memoráveis como “A TV mais feliz do Brasil”, “Primeira no coração de vocês” e “A cara do Brasil”. Apesar das mudanças bruscas ao longo da trajetória – que chegaram a render o apelido ‘Silvio Brincando de Televisão’ nos bastidores – a espontaneidade, a leveza e a diversão sempre foram pilares sólidos do seu branding, sustentados por uma identidade visual colorida, um tom de voz descontraído e uma comunicação coerente com o mercado publicitário.

Cronologia de logotipos do SBT em sua história (Foto: Reprodução/X/@arturenovato)

Campanhas com todo o elenco, divulgação em jornais e revistas, e planos comerciais estampavam o rosto de Silvio, que fazia questão de participar ativamente das decisões. Sua credibilidade, construída em mais de 70 anos de rádio e TV, garantia ao artista a facilidade de conseguir recursos e patrocínio para a rede, sendo o principal fiador destas relações.

Toda esta imagem que temos, porém, parece estar no meio de ‘agruras’ causadas pela desassociação de marca.

As crises dentro da crise

Veículos especializados, como Notícias da TV, UOL Splash e F5, noticiam diariamente a queda de audiência do SBT, com programas que mal chegam a 2 pontos no Ibope, disputando espaço com a Band após perder a vice-liderança para a Record.

No campo financeiro, o cenário também preocupa. O setor de dramaturgia foi extinto, e a plataforma de streaming +SBT já acumula prejuízo de cerca de R$ 70 milhões. O fechamento das contas de 2024 no vermelho, após anos de estabilidade, acendeu o alerta e provocou demissões em massa.

Apesar disso, a gestão atual busca alternativas. Ao perceber que as mudanças drásticas não surtiram efeito, a emissora tem resgatado suas raízes, trazendo de volta programas como Bom Dia e Companhia, Aqui Agora e Casos de Família. No aniversário de 2025, reativou a clássica campanha “Quem Procura, Acha Aqui”. São tentativas de reaproximação, mas ainda insuficientes para reverter o quadro.

É preciso entender que TV é hábito, é costume. Para fazer grandes mudanças, nada pode ser abrupto, se não o resultado é um fiasco.

O primeiro ponto é consequência da fuga do sofá, ou seja, dos telespectadores fiéis que não se identificam com as mudanças – alguns começam a voltar com a retomada de produtos icônicos, como novelas mexicanas e Chaves. Já os anunciantes, mais cautelosos, reduzem os investimentos diante de um canal que perdeu a conexão histórica com o espectador. Sem exageros, há uma rota de colisão que parte da crise de identidade como marca.

É a partir dela que se estrutura as crises que vemos na emissora: planejamento, público, finanças e gestão de pessoas. Isso acaba se tornando um elemento grave pois, como um rosto humano e sua voz, o branding, se alterado sem cuidado, deixa de transmitir credibilidade.

O que aprendemos com isso?

O caso do SBT é uma demonstração clara de como o branding é vital para qualquer organização. E o analista que vos escreve vai além: isso vale para tudo, pessoas, entes privados dos mais variados ramos, instituições do terceiro setor. É o DNA, os valores (que vão além do financeiro), a raiz e o motivo para existir e atuar.

A particularidade aqui é que a emissora nasceu e cresceu sob influência direta de seu fundador. Essa prática é comum quando uma personalidade empresta sua imagem a um negócio – como a influencer Bianca Andrade, com a Boca Rosa Beauty, ou o streamer Casimiro Miguel, com a CazéTV.

No entanto, estamos lidando com nada mais, nada menos, que Silvio Santos, uma figura que atravessou gerações e era, de longe, um dos nomes mais conhecidos no país.

Quando o SBT surgiu, em 1981, o comunicador já tinha 21 anos de TV – começando em 1960 com o programa ‘Vamos Brincar de Forca’, na extinta TV Paulista. Se acrescentarmos a experiência no rádio, isso salta para 36, já que ele iniciou ainda adolescente na Rádio Guanabara. Era lógico que seu canal, a primeira no Brasil a ser comandada por um artista do setor, seria seu espelho.

Silvio Santos assinando a entrega de concessões em Brasília, momento que o SBT foi ao ar em 19 de agosto de 1981
O ato de entrega de concessões em Brasília, momento que o SBT foi ao ar em 19 de agosto de 1981 (Foto: Divulgação/SBT)

Uma curiosidade: nos primórdios da rede, algumas emissoras locais eram chamadas de TVS, em referência à Televisão Studios, entretanto, todos pensavam que a sigla era referente a ‘TV Silvio Santos’.

Isto é poder de branding em sua forma mais cristalina, onde a rede era vista como extensão de sua própria persona. Com 118 afiliadas espalhadas pelo país, a emissora falava a mesma língua do ‘patrão’ inconscientemente. Todos entendiam e, apesar das mudanças repentinas, não havia alteração sobre o entendimento que era quase uníssono: era o SBT do Silvio.

O problema é que a imagem tornou-se indissociável de Silvio. Sua morte escancarou a ausência de um plano de transição que construísse uma identidade independente. Agora, a crise exige soluções imediatas: buscar um equilíbrio de forças entre as inovações que caibam no momento que vivemos e as ideias que o falecido apresentador implementou durante décadas.

Em suma, é preciso manter viva a herança de Silvio Santos, mas sem abrir mão de um reposicionamento que dê sustentabilidade à marca no futuro.

A grande lição para empresas e pessoas é simples: trate sua marca com zelo, esteja ela ainda fecunda, em crescimento ou já no auge. Ela é identidade, memória e conexão. Mudanças radicais sem planejamento, pesquisa e maturação, desconsiderando o público, podem custar caro – a ponto de transformar uma história de sucesso em uma crise a ponto de não a reconhecer mais.

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foto antonio

Antônio Anselmo

Jornalista, designer gráfico e especialista em branding

CEO e Diretor de Marca e Conteúdo